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quinta-feira, março 28, 2024

Quem concordou com o acordo?

Primeiro foi o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, e de repente ninguém mais sabia onde ia trema, acento e hífen. Meus alunos acharam uma saída: “É assim, professora: onde tinha, não tem mais; onde não tinha, agora tem”. Eles são criativos, admito, mas a confusão não é só deles. Nos dicionários de nossos conterrâneos portugueses, encontrei “cato” em vez de “cacto”, mesmo a regra do acordo deixando clara a manutenção do “c” em meio aos encontros consonantais quando houvesse implicação no significado, quer dizer, alteração do sentido.

E agora, antes até de o – não tão – novo acordo ortográfico ser ratificado por todos os países lusófonos, já está em movimentação, no Senado brasileiro, uma proposta que considera nova modificação na escrita do português. E dessa vez, bem mais radical: ela se baseia na simplificação pela fonética. É mais ou menos assim: “Oje xegei atrazado na sesão de terapia porqe xoveu”. Bom, pelo menos não mudaram a terapia, porque dela a gente vai precisar!

A movimentação dessa proposta é pretensiosa: a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) criou o Grupo de Trabalho Técnico (GTT), que se reuniu ao Centro de Estudos Linguísticos da Língua Portuguesa (Cellp) e à Academia de Letras de Brasília (ALB), para propor o projeto. Embora o Senado tenha publicado notícias de que não há projeto de lei em trâmite na casa, os rumores se mantêm (com acento), e um site em plena atividade promove um abaixo-assinado (com hífen e dois esses) esperando quórum (com “qu”) para endossar o projeto.

E você que estava às voltas com a dúvida de acentuar ou não Odisseia, agora terá de se lembrar também de que ela terá um “s” só. O que diria Homero sobre isso (se é que ele existiu)? Pelo menos temos certeza de que ele não era brasileiro. Iria ficar confuso, por certo.

Bom, mas se houver nova mudança baseada na escrita fonética, espero que ela dê espaço para as variedades linguísticas. Em São Paulo, acho justo escrever leitxi; no Rio Grande do Sul, leite, e no Rio de Janeiro, leitiã. Ficou em dúvida sobre o acento? É só falar em voz alta. Daí, o Ceará, no Ceará, passará a ser Céara. Em São Paulo permanece Ceará.

Ora, quão absurda pode ser essa proposta? Que a língua muda, não há duvidas. Um claro exemplo é você! Não você, leitor, mas a palavra “você”, corruptela de “vossa mercê”, que passou a “vosmecê”, chegando a “você” e, atualmente, “vc” e “c”. É o princípio da economia linguística, no qual retiramos letras das palavras, palavras das frases e fazemos outras artimanhas para simplificar a fala, suprimindo dela qualquer informação que possa ser redundante. Mas a diferença com a proposta é que esse é um movimento natural, não imposto por uma lei que se justifica a partir da premissa “pra que complicar a escrita?”.

Uma arbitrariedade! Condicionar os falantes de uma língua a uma lei que regulamente sua ortografia é reduzir essa língua a um apanhado de regras que, além de cercearem a liberdade expressiva, desconsideram os diferentes históricos de formação desses povos, que influenciam em seus falares. É tentar simplificar e uniformizar uma língua à revelia de seu processo natural de evolução. Proponho deixarmos a língua como está e nos preocuparmos mais com a qualidade da educação básica brasileira; essa, sim, está precisando de acordos urgentes, que com certeza melhorarão a impressão de que a escrita é complicada.

Claudia Bergamini é linguista de formação e faladora por vocação. Mestra em Língua Portuguesa, acha esquisito falar “mestra” e “presidenta”, e, por isso, fala.

Revista Facebrasil – Edição 46 – 2014

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