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quinta-feira, abril 18, 2024

Como é que se escreve, mesmo?

“Herrar é umano!” Essa piadinha linguística digna de entrar para o rol das clássicas de fim de ano, como “É pavê ou pá comê?”, tem sua (sem) graça justamente na combinação da forma e do conteúdo. A primeira brinca com o significado a partir do desvio ortográfico, e a segunda… bem, a segunda muda o significado do clássico doce de Natal a partir do seu homófono (do grego homos, igual, semelhante; mais phone, som), ou seja, muda o significado a partir da brincadeira feita com a forma, que tem o mesmo som.

Para além de pensar se aquele tio não vai deixar nunca de fazer a piadinha, ela também nos serve para refletir sobre a linguagem. A partir dela, questiono a noção que temos de erro na língua portuguesa.

Canso de ouvir por aí “Fulano fala tudo errado!”, “Sicrano mal sabe o português”. Bem, é preciso desmistificar essa concepção de erro. Aprendemos na escola a escrita formal, regida pela norma urbana culta. A partir dela deveríamos adequar nossa fala ou escrita conforme a situação de comunicação. Assim, em casa, não precisamos usar as concordâncias normativamente perfeitas (ninguém usa, mesmo porque as normas têm suas exceções) para contar nosso dia, ou mesmo saber conjugar o verbo polir na primeira pessoa do singular para se habilitar a polir os móveis.

Então a gente vive errando? Minha resposta é não! Acontece que a gente simplesmente “usa” a língua e, ao contrário do que os puristas pensem, usamos com muita criatividade!

Ninguém “erra” se não for de acordo com o que a língua permite. Nenhum falante diria “Casa nóis da na vai vó hoje minha” porque isso não faz qualquer sentido. Mas a gente diria “Nóis vai na casa da minha vó hoje”, e a mensagem, mesmo desviada da regra de concordância do pronome com o verbo, está perfeitamente inteligível.

Aí os puristas pira! “Onde já se viu? É erro, sim!” Bom, é um “desvio normativo”. Isso quer dizer que está dentro dos padrões da língua, mas fora apenas da norma padrão. Se você visse uma placa dizendo “Bem vindo”, se sentiria não tão bem-vindo assim, sabendo que a palavra tem hífen? E se visse um “Bom dia” escrito pelo presidente da empresa, chamaria ele de “burro”, já que bom-dia se escreve com hífen? (Sim, com hífen! Você põe hífen no bom-dia?) Ou você não comeria mais a pizza de que tanto gosta se no cardápio da pizzaria viesse uma “mussarela”, em vez da normativamente correta, mas não menos saborosa, muçarela?

Ainda não se convenceu? Pois bem, tenho outro exemplo: no verso 46 do Canto X de “Os Lusíadas”, Camões fala em “doenças, frechas e trovões ardentes”. Frechas, Camões?

Certamente você receberia represálias puristas hoje em dia. O fenômeno, também presente na “frechada do teu olhar”, de Adoniran Barbosa, é chamado de rotacismo e consiste na mudança do “l” para o “r” por uma adaptação fonológica, que se explica pela proximidade dos pontos de articulação desses fonemas. Muito mais complexo do que simplesmente dizer que se trata de erro.

Bom, mas uma coisa eu posso dizer com certeza: 90% dos leitores ficaram tentando conjugar o verbo polir na primeira pessoa do singular. Quer saber? Eu “pulo”! (Oi?) Isso mesmo! E por ser um homófono com a mesma conjugação de pular, é pouco (ou nunca) usado. E aí, vai arriscar fazer a pizza de muçarela neste findi? Ou prefere pensar num novo leiaute para os móveis da sala? Ou, quem sabe, polir a mesa de centro…? Bom, essa, eu pulo!

Claudia Bergamini é linguista de formação e faladora por vocação. Mestra em Língua Portuguesa, acha esquisito falar “mestra” e “presidenta”, e, por isso, fala.

Revista Facebrasil – Edição 47 – 2015

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